Charles Lloyd "New Quartet" (10.07.11)
(fotos: cortesia de Fundação Serralves e © Filipe Braga)
Não são raras as vezes em que nos deparamos com recensões de discos ou concertos de jazz em que este ou aquele escriba nos descrevem, com familiaridade algo estudada e um tanto blasée, contextos e situações em que mais parece tornarem-se eles os verdadeiros protagonistas e não tanto as criações e os criadores à volta dos quais a escrita parecia poder inspirar-se.
É nisto que penso ao caír, precisamente, no mesmo tipo de tentação: mais ainda, ao pretender imaginar que os agradáveis minutos que antecederam em bastidores o concerto de Charlos Lloyd no passado domingo 10 de Julho no court de ténis dos jardins de Serralves, poderão ter desempenhado alguma influência, mesmo que longínqua, no início do mesmo.
De facto, durante os informais momentos de cavaqueira que o histórico saxofonista passara, em roda de amigos e à volta de alguns refrescos, recordando memórias antigas ou recentes das suas passagens por Portugal, eis que havia decidido subitamente abandonar o alinhamento das peças que pensara tocar (e porventura combinara com os restantes elementos do seu quarteto!), para nos perguntar de chofre: "O que é que vocês querem que eu toque?". Ao que alguns de nós respondêramos, sem grande imaginação mas com óbvio propósito: "A tua música! Isso nos chegará..."
O certo é que alguma ingenuidade e bastante petulância me levaram pouco depois a pensar que aquele começo de certo modo titubeante que ficou a marcar, como quem apalpa o terreno, a primeira meia hora do concerto (fazendo adivinhar uma actuação porventura não tão memorável como outras a que já assistíra anteriormente), terá traduzido a busca, por parte de Lloyd, de um caminho musical que tornasse familiar uma mensagem de identificação, proximidade e quem sabe reconhecimento pelos belos momentos entre nós já vividos pelo músico, desde há mais de quatro décadas até hoje!
A verdade é que, passados esses breves momentos de um concerto amplo que foi crescendo em intensidade, emoção e musicalidade ao longo de quase duas horas de completa entrega à música dos quatro instrumentistas em palco, a abordagem consecutiva de duas peças de atmosfera bem diversa -- Monk's Mood (Thelonius Monk) e Passin' Thru (original dos idos de 1968) -- parece ter constituído um clique capaz de dar uma volta à performance, com a clara cumplicidade de Jason Moran (piano) no emocionante solo da primeira e o som rotundo e grave do contrabaixo de Reuben Rogers a fazer toda a diferença na segunda, terminando essa sequência com um vibrante diálogo de sax-tenor e bateria (Eric Harland) e uma deriva politonal totalmente inesperada.
Começava então a surgir em primeiro plano o modo eminentemente lloydeano (em parte herdado de Coltrane mas marcado por um estilo bem pessoal) de enunciar os temas e o traçado das improvisações, como sempre rodeando de arpejos e enriquecendo de harmónicos as notas fundamentais que são a sua matriz ou que o músico inventa para as suas variações; e, ainda, a enorme maturidade de um Jason Moran, mais consistente e criativo do que nunca, na busca da exacta medida dos comentários aos solos dos companheiros ou no desenvolvimento, por vezes imparável, dos seus próprios improvisos. Eis uma característica singular, entre outras, que caracterizam de forma exaltante este quarteto em concreto de Charles Lloyd.
Estava assim aberto o caminho para uma nova sequência de três originais do saxofonista: New Anthem, revelado num álbum raro gravado em grande formação instrumental e vocal (1971)
e no qual se sentiu a aturada busca do tempo colectivo mais adequado; La Colline de Monk, este bem mais recente e pela primeira vez registado ao vivo na digressão europeia (2007) em que este quarteto, como tal, se estreou, agora com uma grandiosa improvisação de Jason Moran em diálogo com um delicado pássaro que por ali andava; e, finalmente, Sweet Georgia Bright (baseado nos acordes do clássico Sweet Georgia Brown) intensamente gozado e swingado por todos os membros do grupo.
Restaria ainda, para os admiradores da inconfundível tradição modernista de que Lloyd é um dos sobreviventes mais iluminados, um fim de festa em boa verdade único, no qual se construiram com laboriosa criatividade nada menos que quatro encores: The Water is Wide (1999), Third Floor Richard (1965) e Island Blues (1963), todos eles abordados de uma forma transcendente, por vezes algo misteriosa na sua deliberada e estilhaçada indefinição temática, com os deambulantes arpejos do saxofone e os harmónicos da flauta a desafiarem outras tantas digressões pelo piano e pelo contrabaixo; e ainda um enxuto e superlativo Come Sunday, recriando Ellington em religioso silêncio.
Um concerto em que o essencial substituiu o postiço, o espalhafato se rendeu à seriedade, os talentos individuais serviram o colectivo, a irreverência dos devaneios se conjugou com o saber da veterania e em que o aleatório e a aventura caminharam a par do mais tranquilo e intemporal classicismo.
Mário Laginha e Convidados (16.07.11)
fotos: cortesia de Fundação Serralves e © Silvana Torrinha
Assistir ao Jazz no Parque costuma ser também, regra geral, passar uns tranquilos momentos de lazer e fruição musical na calmaria do fim de tarde dos belos jardins de Serralves. Essas condições favoráveis e únicas estiveram, pela ameaça da chuva, à beira da total inversão no sábado seguinte, antes e durante o excelente concerto de Mário Laginha, no qual este estreou, com o britânico Julian Argüelles (saxofones) e o norueguês Helge Nörbakken (percussão) um repertório novo, numa encomenda especial de Jazz no Parque em comemoração do 20º. aniversário do evento.
Apresentado com a habitual simpatia, naturalidade e "sincopado" pelo sempre sorridente Laginha, percebeu-se que este repertório, acabado de compor e revelado em estreia mundial, constitui uma espécie de suite em que uma ou mais peças (por sua vez divididas em secções) podem ser agrupadas na sua execução e ainda não têm título, um pormenor que levantou (também em bastidores) a questão mais geral e por vezes insólita da adequação ou não dos títulos às peças propriamente ditas e da (por vezes literal e exagerada) credibilidade que os ouvintes atribuem ao seu significado, quantas vezes levando-os a descobrir associações e referências que nunca foi intenção que lá estivessem... Mas isso dava para uma outra conversa.
Uma característica que, desdo logo, sobressaiu do novo repertório apresentado por Laginha e seus convidados é a de que ele provém de uma personalidade musical fortíssima e de uma individualidade composicional que resiste (ou se molda) às variadas modalidades de execução (instrumental ou vocal) através das quais essas obras chegam à recepção do público.
Independentemente de estarmos no terreno do jazz (para pequenos conjuntos ou grandes formações), de música improvisada mais próxima das expressões populares (com ou sem voz associada) ou mesmo de obras inseridas num contexto concertístico, há claramente no compositor traços comuns e princípios de escrita e desenvolvimento que permanecem, não imutáveis mas sustentados num continuum evolutivo que sempre se transforma e se completa.
Para além de uma inata e fulgurante imaginação que ajuda a explicar o estilo de Laginha, sem dúvida que este à-vontade no labor da construção e desconstrução temática, lhe vem do facto de ser pianista, ou seja, de se exprimir (e pensar música) num instrumento completíssimo que, com transparência e diversidade tímbrica e proporcionando a exuberância dos contrastes dinâmicos, é capaz de reproduzir ou deixar implícita, por excelência, uma forma de estar na composição.
Por outro lado, sendo a improvisação um elemento essencial do desenvolvimento composicional e das sucessivas descobertas e surpresas politemáticas (surgidas ao próprio autor, não raro em tempo real), não pode deixar de estar quase sempre presente nas actuações do pianista o estímulo ao mesmo tipo de arrebatamento e identificação criativa que os seus companheiros-músicos e até os mais atentos ouvintes sem dúvida vão experimentando, no decorrer de tal ou tal execução.
Reconhecer a marca de Laginha nas suas composições, entender como muito do que é inventado é suscitado pelas constantes deambulações harmónicas estabelecidas em permanentes círculos de simetria e vai-e-vem mais ou menos definidos - ou sustentados, ao contrário, pela produção insistente de notas-pedal -, é estar, creio, não perante o risco de uma "receita" que se repete sob várias roupagens mas perante o desafio de aprofundar um "sistema", a um tempo suficientemente sólido e amplamente aberto, que permite (e favorece) os já mencionados arrebatamentos improvisativos.
Quando isto é gizado (e dialogado) na companhia de músicos singulares e talentosos, além de companheiros de anos, como são Julian Argüelles e Helge Nörbakken, tudo decorre, caminha e cresce quase sem incidentes de percurso, mais uma vez confirmando o primeiro porque é, a meu ouvir, um dos mais estimulantes e personalizados saxofonistas europeus (cada vez mais único, se possível, no sax-soprano), e destacando-se o segundo pelo bom gosto, sensatez, balanço e ausência de demagogia com que utiliza os insólitos e originais elementos do seu polivalente dispositivo de percussão. Bem hajam!
Em tempo: com esta cobertura do Jazz no Parque regressa o escriba de serviço, pé ante pé, a O Sítio do Jazz, com a frequência e a regularidade que a motivação e a disposição permitir. Coisa que, convenhamos, não é coisa que por aqui abunde.
Para já, é fora de dúvida que os próximos concertos pelos grupos de Dave Douglas (23.07.11) e Chris Lightcap (30.07.11), também em Serralves, mais do que aguçam o apetite. Até lá, portanto!
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